É preciso continuar
Ana Cristina Cachola



É preciso continuar, eu não posso continuar, é preciso pronunciar palavras enquanto as houver, é preciso dizê-las até que elas me encontrem, até que elas me digam – estranho castigo, estranha falta, é preciso continuar, talvez já tenha acontecido, talvez elas já me tenham dito, talvez me tenham levado ao limiar da minha história, diante da porta que se abre sobre a minha história, e ficaria surpreendido se ela se abrisse.
Samuel Beckett apud Michel Foucault in A Ordem do Discurso[1]


Um acontecimento constitui um campo de ambiguidade. A sua existência está dependente de um conjunto de variáveis, muitas vezes aleatórias, que ditam a sua ontologia, repercussão, singularidade, as suas causas e os seus efeitos.  É o acontecimento que faz fracassar  todos os sistemas de razão e nega a possibilidade de um saber absoluto (Renaud, 1997 :59)[2], porque a sua capacidade performativa — aquilo que o acontecimento faz —, sendo sempre possível e muitas vezes provável, escapa à certeza antecipada.  E por isso cada acontecimento é irremediavelmente um acidente.
Cada obra de Vera Mota é um acontecimento. Cada obra de Vera Mota está dependente de um conjunto de variáveis, muitas vezes aleatórias, que ditam a sua ontologia, repercussão, singularidade, as suas causas e os seus efeitos. Cada obra de Vera Mota faz fracassar  todos os sistemas de razão e nega a possibilidade de um saber absoluto. E por isso cada obra de Vera Mota é irremediavelmente um acidente.
A substituição de sujeitos nos parágrafos anteriores ultrapassa o mero artifício retórico, mas é talvez deficitária em abranger a complexidade da obra da artista. Na verdade, cada obra de Vera Mota é um meta-acontecimento, já que aquilo que acontece é devedor de uma reflexão sobre as dinâmicas que regem cada ocorrência.  E por isso o acidente não é resultado de uma predisposição anterior ou de uma qualquer apologia visual do erro,  nem existe uma pretensão de esvaziar o acidente da carga de aleatoriedade que lhe está associada, é o acidente, na sua inexorável singularidade, que marca a individuação da obra. Não será mera coincidência o facto de quatro das suas exposições individuais terem como título Acontecimento[3] e que, em todas elas, a artista interrogue, exactamente, este  território da inevitabilidade plástica.
A exposição que apresenta agora no Museu da Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto — ÁREA — é herdeira desta genealogia, remetendo-nos, neste caso, para o campo da bidimensionalidade (território congénito do desenho), para uma ideia de superfície que, através de procedimentos vários, a artista tenta circunscrever.  Esta sujeição do espaço a um movimento de medição (e também de restrição) obriga a suspender a sua  percepção natural (ou naturalizada), já que a limitação de um espaço se assume sempre como exercício de poder.
Área inclui-se num léxico comum a toda a obra de Vera Mota. Se revisitarmos os títulos de exposições anteriores — Queda/ fractura, SCHEMA, a.b.c.d.e.f.g.h.i.j.k.l.m.n.o.p.q.r.s.t.u.v.w.x.y.z, Acontecimento (I-V) — reconhecemos uma preocupação recorrente com sistemas de organização, catalogação e medição.  A acção de titulação não é, contudo, subsidiária de uma tentativa de encontrar o correlato visual da obra no exercício de nomeação, existe, isso sim, uma intenção organizadora que atravessa a complexidade sígnica (verbal e visual) que o trabalho apresenta. Os títulos das exposições, assim como os títulos das obras, possuem uma natureza indexical,  servem de guia  para nos deslocarmos por entre os procedimentos que cada obra convoca; constituem uma espécie de glossário que esclarece as convenções que dirigem os processos plásticos.
Todos os trabalhos de Vera Mota resultam da relação que se estabelece entre o corpo da artista e a natureza dos materiais utilizados. E, neste sentido,  o seu trabalho é sempre performativo.  Mas a performance não pode, aqui, ser reduzida a uma fórmula de análise, ou a referência estatutária do trabalho da artista: na sua obra há desenho, pintura, escultura, vídeo e instalação, que em todos os casos é resultado de um acto performativo intencional e consciente.  É uma sucessão de gestos que se inscrevem sobre superfícies distintas que delimita áreas, cria fracturas, provoca quedas, estabelece esquemas e desenha figuras.
É certo que o objecto artístico já não é visto como detentor de um significado único, prescritivo e irredutível, que alcança um espectador universal e, neste contexto, aberto o espaço para uma inter-subjectividade alargada, qualquer  obra de arte pode ser considerada  performativa (cf. Jones e Stephenson, 2005: 1). A dimensão performativa que encontramos aqui extrapola esta proposta ao reduzir o procedimento e o resultado a gesto puro. As performances Queda, Evento, Composição, Figura (2013) e Vinco (acção para explicação da lâmpada) (2013) concorrem, precisamente, para um entendimento da acção que provoca os eventos plásticos que constituem a sua obra, independentemente do suporte. A primeira, revela o conjunto de regras e de ocorrências aleatórias que dirigem a composição visual nos trabalhos da artista, ou seja, de que forma a convenção possui um papel central no desenvolvimento de cada projecto. Em Vinco (acção para explicação da lâmpada) gesto e registo de imagem coincidem no tempo e no espaço. O dispositivo criado permite que o exercício performativo se inscreva de forma imediata, e visível para o espectador, numa superfície autónoma.
Organizar, ordenar, categorizar, classificar, medir. Esta corrente de predicados percorre todo o processo gerador de formas e serve de contraponto ao surgimento da falha. Contudo, não encontramos uma hierarquia valorativa do certo e do errado, a falha, o acidente surgem enquanto revelação do que há de ilusório nos exercícios de controlo. O processo de criação da artista assenta, assim, numa praxis dirigida, mas que se sabe, aprioristicamente, falível. Exemplo disso é a série Grid (2013-2014), um conjunto de grelhas em que o temperamento do material utilizado (acrílico) faz fracassar a precisão do gesto. Esta grelha descontínua aparece depois remendada, em Fractura(2014), conferindo destaque à expressão plástica da falha: o acto de sutura cristaliza a cicatriz que revela as tentativas várias de manter a ordem. Em alguns casos esta acção é denunciada pela oposição cromática do preto e do branco, ou pela utilização do óleo do lugar de acrílico.
Partindo de procedimentos metodológicos exactos e rigorosos, que obrigam a uma espécie de domesticação do corpo que faz, há uma tentativa de controlo do comportamento dos materiais, que não é abalada pelo seu constante fracasso. A economia do fazer é partilhada pelo corpo da artista, a técnica utilizada e pelos materiais que possuem autonomia produtiva.  As Figuras que surgem a partir de detritos industriais de couro são isso mesmo, o resultado do imperativo do material e da acção que a gravidade exerce sobre ele. Estes detritos acabam por se insinuar como corpos espectrais, que através do exercício titular (sempre uma tentativa de catalogação, de nomeação do inominável)  encontram uma identidade figurativa. Em Schema (2013) e Schema II (2014), uma porção de tinta de óleo é depositada sobre cada quadrícula da grelha que atravessa o trabalho. A viscosidade da tinta, assim como as propriedades da superfície que a absorve fazem com que o desenho continue de forma autónoma, mesmo depois de cessada toda a acção exterior. Schema  foi também o título da exposição que a artista apresentou na Appleton Square, em 2012. Desta exposição fazia parte uma peça sonora, Afinação de piano em Lá 440hz (2012), em que, e apesar das particularidades do som, eram aplicados os mesmos princípios metodológicos de domesticação do material. Neste caso, ao longo de cerca de 40 minutos ouve-se a tentativa de afinação de um piano.
Desde muito cedo que o trabalho de Vera Mota revelou uma predisposição incessante para a convocação de dispositivos de normalização verbais e visuais que permitissem estabelecer coordenadas de leituras estáveis, para depois abalar essa estabilidade, denunciando a falácia do controlo absoluto. Neste sentido, a grelha, padrão regular de linhas horizontais e verticais espaçadas entre si, usada como referência para a localização de pontos, é transversal a toda a sua produção artística. Em Grid (2013), o acrílico é obrigado a deslizar sobre a tela de forma a desenhar uma trama, mas as linhas são interrompidas por fracturas impostas pelo processo. Em Schema II (2014), o material escolhido como suporte — a juta — impõe uma grelha duplicada e sobreposta.
A omnipresença da grelha ecoa, no entanto, para lá da sua evidência visual. Se por um lado, é certo que em grande parte dos trabalhos da artista se insurge uma trama de linhas e traços (tomem-se como exemplos os apresentados na exposição a.b.c.d.e.f.g.h.i.j.k.l.m.n.o.p.q.r.s.t.u.v.w.x.y.z, na Galeria Pedro Oliveira, em 2012, ou em Queda/ Fractura, este ano, no Laboratório das Artes em Guimarães), por outro, a ideia de uma teia de organização visual atravessa toda a sua obra. É também uma grelha, reduzida à sua unidade mínima, a quadrícula, que se revela na disformidade de Plano/interrupção/cedência (2014). A  quadrícula é destituída da sua persistência geométrica, pois os cortes no tecido que a sugerem são deformados pelo peso das peças de gesso que lhe são acrescentadas.
A grelha é no trabalho de Vera Mota a medida do acontecimento visual, a matriz que assegura a fuga à norma, o padrão que evidencia o desvio. As suas pretensões não são as de garantir uma autonomia da área em que a obra de arte toma forma, como as da grelha a que se refere Rosalind Krauss num texto escrito em 1979[4]. O propósito é manifestamente outro: negar essa autonomia pela sua (re)afirmação. É preciso continuar a fazê-lo. A insistência nos materiais utilizados (gesso, carvão, acrílico, couro, grafite, pigmento), a persistência numa metodologia rígida e meticulosa, a recorrência (até mesmo a reutilização) de títulos, a vinculação ao desenho como gesto operativo, não resultam, de forma alguma, em repetição inconsequente ou inibem a produção de novos sentidos.  Todos estes exercícios se conjugam para alimentar uma iteração generativa e clarificadora. É preciso continuar a fazê-los.  
Quando Foucault no início de A Ordem do Discurso convoca o trecho de L'innommable de Samuel Beckett que se pode ler em epígrafe, fá-lo para alertar para os perigos de tomar a palavra (e para o desconforto de a tomar por primeira vez), pois as palavras tornadas discurso têm sempre algo de terrível e maléfico. O mesmo se pode dizer das imagens tornadas estrutura. O discurso, assim como as macro-estruturas de classificação, possui uma força auto-geradora de ordem que inibe a suspensão e reproduz incessantemente relações de poder. A voz que Foucault deseja ouvir (e que toma emprestada a Beckett), ressoa  ao longo de toda a obra de Vera Mota. A necessidade de continuar (de estilhaçar a grelha ao repeti-la), de denunciar  a ordem enquanto distopia através da ordenação, reclama uma performatividade contínua e é uma forma de resistência. Por isso, é preciso continuar.


Junho de 2014









[1] Foucault, Michel (1997), A Ordem do Discurso, Lisboa: Relógio D’ Água, 1970.
[2] Renaud, Michel (1997), Acontecimento, Logos, Lisboa: Verbo.

[3] Acontecimento, Ateliers Matadouro, (comissariada por Raquel Guerra), Alvito (2009); Acontecimento II, Segundo Piso, Santo Tirso (2010); Acontecimento III, Espaço Campanhã, Porto (2011); Acontecimento V, Carpe Diem Arte e Pesquisa, Lisboa (2011);
[4] Jones, Amélia, Stepheson, Andrew (ed.) (1999), Performing the Body – Performing the Text, London and New York: Routledge.












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